Os destinos (im)possíveis do Amor

Os Deuses só fazem sentido para mim, quando me aproximo deles. Por isso, de tempos em tempos, fico imaginando os espaços vazios nos mitos. Completo comigo mesmo aquilo que ou está em branco ou pode se alargar com o poder da imaginação. Em um momento de conexão com Wesir e Aset, me vi pensando certas coisas as quais eu gostaria de compartilhar.

“Houve um tempo onde existia apenas o aqui e agora do Amor.

No espaço vasto do universo de céu e estrelas, a terra dançou com ternura sobre o corpo do infinito. Nut e Geb, o céu e a terra, um sobre o outro.

A voz distante da profecia dos ciclos se anunciou, porém, rápida, certeira, agoniante. Atravessado por Shu, os ventos da mudança, o corpo único do nosso mundo se dividiu em dois. Nut e Geb, o céu e a terra, um sobre o outro.

Mas o Amor sempre deixa marcas. E cinco lembranças dos tempos imemoriais se tornaram vivas por entre as estrelas cintilantes da alma de Nut. No útero dela, cinco vezes brilharam as luzes do maior de todos os ritos.

Destas grandes crianças, de duas delas, especialmente, iremos hoje nos lembrar.

No útero de Nut, Wesir e Aset se conheceram e se amaram, antes de serem Aset e Wesir.

Wesir, sem dever, sem o poder, despido de suas obrigações e abnegações.

Aset, antes de seus tantos sacrifícios e esforços.

Você consegue imaginá-los? O que eles sentiram, pensaram, sonharam quando viram um ao outro pela primeira vez?

Imersos no calor intenso de seu próprio nascimento, eles se apaixonaram.

Gosto de imaginá-los crianças apaixonadas. Vejo-os dois assim: no parquinho de poeira estelar, Wesir tropeça, pois a coroa, grande demais para sua cabeça, o tempo todo cai sobre seus olhos. Aset, rindo, levanta o chapéu esquisito de seu desajeitado amigo com pequenas e habilidosas mãozinhas. Seus olhos ainda inocentes se encontram. Suas bochechas se aquecem pela primeira vez.

Gosto, também, de imaginá-los crescer. Já maiores, correm e brincam com seus irmãos. Desenham constelações sobre o céu. Escondido de todos, Wesir molda, em uma parte de céu totalmente escuro, a forma de um casal de mãos dadas. Aset esculpe um coração em um cantinho na parte de baixo do casco do Barco de Milhões de Anos.

Até que, de repente, o mundo inteiro muda. Antigas amizades são revisitadas com o toque colorido do desejo. No paraíso eterno, um novo olhar é trocado. De novo, redescobrindo-se, eles se olham.

Nesse momento, será que eram capazes de ver?

Wesir, ao perceber Aset se tornar uma linda mulher, deseja construir um mundo inteiro para ela reinar, onde eles possam estar para sempre juntos. Um rapaz apaixonado, disposto a enfrentar todos os perigos por sua amada, conseguiria perceber todos os sacrifícios os quais ele seria obrigado a fazer? Ao alisar, pela primeira vez, os cabelos cheirosos de seu primeiro e grande amor, ele temeu ter de um dia partir?

E Ela? Ao perceber o rapaz desengonçado se tornar, pouco a pouco, um homem elegante, um guerreiro hábil, também sentiu aquela vontade esquisita de passear de mão dada. Orgulhosa, ela pensa que ele nem é tão bonito assim. Mas, de relance, ao perceber o sorriso não mais infantil ganhar firmeza no novo rosto em mudança, seria ela capaz de antever quantos sacrifícios faria por ele? Quando ela finalmente desse a ele a chance de um primeiro encontro – mas só porque tinha um tempo livre, é claro -, seus olhos já sentiam o marejar das lágrimas futuras?

E, assim, viria o primeiro beijo. Estranho, quente, desarranjado. Eles se abraçariam sem saber o que fazer com seus próprios corpos. Depois, então, viriam outros encontros. E eles cresceriam.

As vezes eu penso que não, eles não tinham como saber. Aset e Wesir eram inocentes potenciais e viviam como se não houvesse futuro para além dali. Aproveitavam para enrolar um pouco. Fingiam, às vezes, que não gostavam mais um do outro. Viravam a cara ao se encontrar entre uma estrela e outra. Falavam pros outros sobre os defeitos do companheiro. “Aset é muito difícil” – Wesir um dia diria “Ela sempre tem um atalho pra tudo”. “Wesir é muito certinho” – Aset, reclamaria “Se eu não ficasse atenta, nossos encontros seriam passar pano na via láctea”. E, depois de um tempo de raiva e pirraça, eles se perdoariam. E Aset voltaria a amar a ordem calma e respeitosa de Wesir. E Ele, relembraria a intensidade alegre de sua Amada.

Em outros momentos, penso que eles souberam sim. Aos poucos, ao amadurecerem, perceberiam que havia muito ainda pela frente. Mas, por isso mesmo, decidiram se amar. Com toda sua coragem e petulância adolescente, ousaram escolherem-se um ao outro e se amar muito e tão forte quanto pudessem, enquanto pudessem, apesar de qualquer coisa.

Wesir diria: mesmo que pelo meu caminho eu tenha de abrir mão de tudo aquilo que construí. Ainda que haja inimigos, dores e guerras. Ainda que meu corpo se despedace inteiro, eu te amarei para sempre. Vou tatuar o seu nome no meu antebraço em letra cursiva. Vou aprender a dirigir para te levar ao cinema. Apostarei corrida com Set e, quando eu ganhar,  dedicarei minha vitória a você. Para sempre, você será o motivo da minha ação, do meu dever e da minha luta. No meu coração e em minha alma, eu nunca vou te esquecer.

Aset também diria: não há como saber o que virá, mas é possível que venha dor. É possível que obstáculos surjam e preços sejam cobrados. Mas eu irei, para sempre, me manter pura e verdadeira. Eu serei forte, mesmo quando eu não souber o que fazer. Eu não deixarei de te amar, mesmo quando você aparecer tatuado. Eu estarei sempre esperando a sua companhia. Eu aprenderei a criar, para presentear as suas vitórias e as minhas. No meu coração e em minha alma, você estará sempre vivo.

E, assim, até aquele momento em que Djehuty trouxesse as novas luzes, eles permaneceriam aconchegados um com o outro, decididos e esperançosos, fortes e cheios de amor. As vezes brincando, as vezes gritando, as vezes brigando e outras tantas vezes sorrindo. De mãos dadas, eles estariam vivos no Amor.

Killian
Beltane 2018

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