Sombra​s e seus significados

Neste texto falarei do termo sombra; não as sombras produzidas pelo encontro entre a luz e uma barreira material, mas sim o conceito cunhado por Carl Gustav Jung. Muitos bruxos, hoje em dia, estão minimamente familiarizado com o termo “sombra pessoal” e faz-­se importante destacar a relevância deste conceito para o auto-conhecimento. Nosso lado sombra possui diversas características que compõem diretamente quem somos e como bruxos, é primordial reconhecermos em nossa sombra uma aliada.

Existem algumas definições mais comuns e conhecidas a respeito da sombra. Quando nos questionamos acerca desse conceito, logo somos assaltados por algumas definições rápidas e bem comuns: “o que desconhecemos existir em nós mesmos”, “o que não enxergamos em nós mesmos”, “características pessoais que lutamos contra”, “o que renegamos em nós mesmos”, “desejos reprimidos”, “o que odiamos em nós mesmos”, “o que não desenvolvemos em nós mesmos”, “personalidade autônoma com tendências opostas ao que fazemos”, “lado não aceito da personalidade”, entre outras. Essas são apenas algumas entre tantas outras possíveis respostas rápidas para o conceito de sombra.

Agora que apresentei algumas tentativas de respostas mais conhecidas sobre a sombra, vamos tentar entender como ela é formada para melhor compreender quem ela é. Veja que eu disse “quem”, pois sim, ela é uma pessoa, ela é você! Bem, a sombra, até onde se conhece, no contexto que aqui consideramos, é um termo cunhado pelo psicólogo Carl Gustav Jung. Segundo a compreensão que adotamos, a sombra começa a ser formada na alvorada de nossos primeiros anos de vida e vai se desenvolvendo pelo resto de nossa trajetória. A sombra nasce quando algum sentimento, ideia, comportamento ou parte de nós mesmos é recebida de forma negativa, como sendo algo indesejável. Isto é, quando escolhemos ou somos obrigados a oprimir parte de nossa personalidade devido a padrões de comportamento e regras sociais que devem ser seguidas, ou porque queremos ser aceitos, entre outras razões.

“Você não deve chorar! Menino não chora! Seja homem, rapaz!” , um pai diz ao seu filho. Tal criança, que poderia ser um homem afetuoso e mais empático passa então a reprimir seus sentimentos, pois afinal, homem não chora, não é mesmo? Pois bem; essa criança acaba de lançar para sua sombra pessoal essa característica. “Você não deve mentir, pois mentir é feio”, uma criança ouve de sua professora; essa característica também acaba de ter sido lançada na sombra. “Você deve trabalhar muito e ser pontual, pois eu não aceito preguiçosos na minha empresa”, disse o patrão exigente para seu funcionário recém contratado. Tal funcionário, que é preguiçoso, passa a odiar essa sua característica, pois ela pode lhe trazer prejuízos. Pronto, outra característica guardada nas sombras. Pouco a pouco então a sombra vai criando sua personalidade própria e suas características próprias no inconsciente dos indivíduos.

Podemos tentar entender então que a sombra é criada paralela e simbioticamente à personalidade do indivíduo que vive em sociedade e busca ser aceito e viver segundo seus padrões e normas de comportamento. O meio influencia diretamente na formação das sombras. Em seu desenvolvimento, no decorrer dos anos, o indivíduo passará por experiências únicas que serão vivenciadas também de maneira única. Dessa forma, este mesmo indivíduo poderá reprimir ou passar a não desejar certas características. Júlio, que apanhou muito de outros meninos na escola, nos seus primeiros anos de educação básica, e que não aprendeu a se defender, pode desenvolver uma antipatia imensa por violência, trazendo então a natureza violenta para seu lado sombrio, desconhecendo em si mesmo a características mais agressivas. Ele desconhece em si próprio essa característica e repudia quem a expõe. Uma outra criança muito violenta pode desconhecer em si própria a característica gentil e afetuosa, devido a experiências únicas, como a necessidade de impor sua masculinidade. Cada experiência, vivenciada em cada meio específico, afeta as pessoas de forma específica.

A sombra também pode abrigar em si potenciais mau elaborados ou que passaram desapercebidos. Isso quer dizer que possíveis chances no desenvolvimento de alguém podem ter sido inibidas e se a pessoa desconhecer tais habilidades, sua sombra a acolherá. Maria, quando criança, tinha muita vontade de ser jogadora de futebol, assim como seu irmão João. Mas sua mãe, a Carla, disse à ela que futebol é coisa de menino e que por isso ela não deveria jogar futebol, mas sim, aprender a cozinhar e se embelezar. Maria, que então não queria ser chamada de “machinho” pelas outras pessoas, passou a odiar futebol e meninas que gostavam de futebol. Sua sombra, todavia, amava futebol. Como neste exemplo, o lado sombrio das pessoas também acolhem potenciais negados, não desenvolvidos ou mal aproveitados.

Enfatizo que essa personalidade reprimida, a sombra, pode conter características consideradas negativas ou positivas de acordo com o sistema de crenças pessoais de cada um. A sombra, queiramos ou não, é parte nossa, nós também somos nossa sombra. Como parte essencial que integra nosso ser e como sendo uma personalidade que vive em nós, ela pode ser nossa amiga ou inimiga, dependendo de como é nosso relacionamento com ela. O indivíduo que luta contra sua sombra luta contra si mesmo. Todavia, lutar contra as sombras apenas a fortalece, enfraquecendo o indivíduo psicologicamente. Lutar contra a sombra significa lutar consigo mesmo, se destruir. Assim, a sombra que é tratada como inimiga também se voltará contra o indivíduo.

Quem nunca ouviu falar daquele pai de família “perfeito” que traía a esposa há anos escondido e que possuía uma outra família? E quem nunca ouviu falar daquele rapaz “gente boa” e super legal que um dia matou a família toda ou do aluno que voltou à escola na qual já estudou e matou vários alunos e professores? Pois bem, eles sofreram uma explosão de sombra. A explosão de sombra é o fenômeno no qual a sombra reprimida não mais pode ser aprisionada e então o indivíduo passa agir de maneira que pode ser assustadora e desastrosa, libertando seu lado sombrio reprimido e inimigo.

Pensemos agora na sombra física provocada pela barreira no caminho da luz. Pois bem; é possível ver a própria sombra em si mesmo? Não! Nós sempre vemos a sombra do lado de fora e nas outras coisas, projetada. Da mesma forma, não conseguimos identificar nosso lado sombrio em nós mesmos sem que façamos algum tipo de projeção. O contato direto com o mundo, com outras pessoas, nos dá dicas de como nossa sombra é. É assim que ocorre a projeção da sombra de Jung. Assim como a sombra física se projeta nas outras coisas, projetamos nossa sombra pessoal em outras pessoas. Sabe quando o santo não bate? Você chega na sala de aula da faculdade e no primeiro dia de aula já não vai com a cara daquele menino insuportável, muitas vezes, sem nenhum motivo aparente? O chamado “ódio gratuíto”. Esta pessoa apenas traz características de sua sombra. Essas qualidades de suas sombras que você encontrou nesse indivíduo são suas também, elas estão nas suas sombras, você apenas não as reconhece em si próprio! Você nega possuir essas mesmas características e se recusa a aceitar tal pessoa, mas você também é dono de tais características.

Lumina Eterna, em seu texto sobre sombras, traz o seguinte exemplo: Um funcionário tem um chefe extremamente arrogante e intolerante, ele reclama que o chefe não percebe como trata mal os seus subordinados. Esse mesmo funcionário, no final do expediente, vai a uma lanchonete e maltrata o garçom. Ele reclama do momento em que entrou na lanchonete e ao momento em que saiu. Quando é feita uma análise das falas do chefe que maltrata os funcionários com as falas do funcionário que maltrata o garçom, ambas serão correspondentes. Todavia, o funcionário não reconheça isso. Esse funcionário não gosta de seu patrão por ser arrogante e nega isso em si mesmo, mas ele também é dono dessa qualidade. Ele consegue ver no patrão a arrogância pois projeta nele sua própria arrogância.

A sombra renegada e oprimida há tanto tempo e de forma tão intensa se fortalece e luta para vir à luz da realidade e poder também participar da vida do indivíduo através de alguma brecha que ela sempre encontra. Isso acontece, principalmente, porque nos negamos a ouvir seus sinais. Quem nunca teve uma crise de raiva, disse e fez coisas que nunca imaginou fazer? Ou quem, por “instinto”, não realizou alguma proeza que julgava ser incapaz de executar? Pois bem, tudo obra da sombra. Por outro lado, uma vez que a sombra é parte de nós mesmos, não podemos usar a desculpa: “Me desculpa por ter falado ou feito isso, foi minha sombra”. Não. Suas sombras fazem parte de você. Então, foi você quem fez ou falou tal coisa. O lema “já que não o podes vencer, alia­-te a ele” se aplica ao inconsciente e às sombras.

Uma pessoa que luta muito contra suas sombra (e consequentemente contra si mesmo) apenas a fortalece, mas aquele que busca entender e ouvir suas sombra, ganha uma amiga e aliada. Já que a sombra pode ser tanto aliada quanto inimiga, vale a pena promover ações no intento de ouvir essa personalidade que foi calada por tanto tempo. Como fazemos isso? Uma vez eu estava com um amigo e, de repente, uma outra amiga dele chegou perto e também passou a conversar com ele. Eu senti ciúmes. Neste momento eu poderia ter alguns comportamentos diferentes: fingir que não sentia ciúmes, pois eu teria que ser uma “pessoa madura”, odiar a mim mesmo por sentir ciúmes, ou perguntar a mim mesmo: “Por que você está sentindo ciúmes?” Eu aceito que sinto ciúmes, tudo bem, não existe nada errado nisso, eu posso sentir ciúmes. Mas, vou tentar me entender para saber qual o motivo de eu ter esse sentimento. Este caso exemplifica uma atitude que pode e deve ser aplicada no caso da sombra pessoal.

É dando ouvido à sombra que nos aproximamos mais dela e nos tornamos aliados. Precisamos buscar entender os sentimentos que temos para que eles não venham ser reprimidos. Nosso lado sombrio é uma realidade e não pode ser negado. Como citei em alguns exemplos, se mantida aprisionada, renegada e, consequentemente fortalecida, a sombra se transforma em uma inimiga e acaba também tornando as pessoas ao nosso redor nossos inimigos. Lembra que eu comentei do efeito de projeção? Então. Em um nível avançado de negação das sombras, ela é uma inimiga e, uma vez que ela já é projetada no outro, acaba-se vendo o outro como um rival. Nesses casos o sentimento é de perseguição. A pessoa tem dificuldade de fazer amigos, se isola do mundo e se torna hostil. Pessoas que vivem dessa forma, veem e fogem de inimigos que na realidade são elas mesmas. Podemos notar esse tipo de comportamento em muitos fanáticos, infelizmente, que nada mais nada menos, fazem uma projeção de sua sombra inconsciente.

Por outro lado, quando o indivíduo reconhece sua sombra como sua amiga e reconhece que algo fora que o incomoda pode ser a projeção de sua sombra, ele traz isso para si mesmo e se pergunta: “o que, dessa característica que me incomoda em tal pessoa, é projeção minha?” Em outras palavras: “O quão eu repudio em tal pessoa também faz parte de mim?” Ao reconhecer que o mal no outro é um mal nosso, crescemos como pessoas e como bruxos. Eu não poderia deixar de citar um trecho que me chamou muito a atenção em um texto sobre sombras que eu li há muito tempo: “Uma Sombra amiga dá abrigo em dias de sol e luz forte, ela descansa nossos olhos, ela nos serve de fonte de diversão e entretenimento quando brincamos com suas diferentes projeções. Para isso, temos que aprender a mexer com a sombra, ela precisa ser integrada e nossas características ruins precisam ser vistas como sendo nossas e a sombra, nossa amiga.” (Pablo de Assis) E é justamente assim que idealmente todo indivíduo deve considerar suas sombras, uma amiga.

Minha concepção de bom e ruim não é a do senso comum. Bom e Mau são conceitos que procuro aplicar de maneira um pouco diferente no meu dia-a-dia. A “raiva” pode ser algo indesejável em alguns momentos, mas pode ser uma qualidade que pode vir a calhar em outros. A “violência” pode ser muito útil caso alguém precise se defender de um ataque físico, mas não ideal na educação de um filho. Perceba como bom e ruim são conceitos subjetivos, mas não caiamos no relativismo absoluto. Da mesma forma, a sombra não é essencialmente ruim. Mesmo que abrigue em si características que não nos agradam, ela também traz outras características que desejamos ter mas que temos dificuldade de reconhecer em nós mesmos. Muita gente também odeia outra pessoa simplesmente porque ela tem uma característica que gostaríamos de ter. Como a sombra é projetada, nós estamos percebendo no outro uma característica latente em nós mesmos.

A sombra é e faz parte do nosso ser e precisamos ter consciência disso, pois nós também somos ela. As sombras devem ser aliadas, nossas companheiras amigas para que não venham nos causar prejuízos. Uma sombra inimiga enfraquece a pessoa, uma vez que exige energia psíquica, emocional e psicológica e causa desgaste. E como podemos nos comunicar com as sombras para manter um relacionamento mais próximo e harmônico? Existem práticas mágicas excelentes. Lumina Eterna, em seu texto sobre sombras, traz seis atividades dessa natureza:

  1. Converse com a sua sombra. Monte um questionário contendo perguntas que te possibilitem conhecer melhor esta face sua. Faça as questões com a mão direita, reflita sobre as questões e responda com a mão esquerda.
  2. Escreva uma carta para sua sombra. Medite sobre o que você escreveu e responda de forma que você pode analisar a maneira como a sua sombra vê o mundo.  
  3. Sinta suas emoções, dance para sua sombra e dance com sua sombra.
  4. Sinta suas emoções, cante para sua sombra e cante com sua sombra.
  5. Medite e peça para que sua sombra se manifeste para você, converse com ela. Dialogue, sempre buscando um ponto de equilíbrio para que ela se torne sua aliada.

6­. Tenha uma conexão com Deusas/Deuses mais voltadas para o submundo e o mundo inconsciente como Hécate, Ran, Hades, Yinepu, Nyx. Peça para que Eles(as) te ajudem nesta jornada.

Ainda, pode­-se fazer uso de oráculos, como o tarô, e manuseio de pêndulo na comunicação com as sombras. Sabe-­se também que as sombras também se comunicam conosco através de sonhos, então, manter um diário dos sonhos e interpretá­-lo de acordo com o simbolismo pessoal próprio é fundamental.

Diz-se que nós somos nossa melhor companhia. No processo de aproximação com as sombras, nós nos tornamos um pouco mais amigos de nós mesmos. Nós passamos a nos amar um pouco mais, afinal, a sombra faz parte de nós mesmos. Como bruxos, aceitar, amar, respeitar e dar voz à sombra é se tornar mais poderoso, é se tornar mais completo. Somos todos luz e sombras, yin e yang e fica a tarefa de aprendermos a sermos mais inteiros, a nos amarmos por inteiro. Espero que este texto possa ter contribuído um pouquinho mais para seu crescimento pessoal como pessoa e como bruxo.

Compartilhar

Iniciado da Tradição Caminhos das Sombras

Deixe um comentário