O Sagrado Masculino, Divino Masculino ou a Cura do Animus são termos que fazem referência a um trabalho de cura e reequilíbrio da psique masculina. Esse tipo de trabalho tem um foco específico em trazer a tona traumas, bloqueios, gatilhos de ódio/medo/raiva/imaturidade e comportamentos abusivos masculinos e entender o que existe por trás desses aspectos desequilibrados. Esse movimento surge em paralelo e pouco depois do movimento amplamente conhecido e divulgado que é o Sagrado Feminino. Essas concepções surgem graças ao trabalho de Carl Gustav Jung que influencia enormemente os movimentos espiritualista pós-contracultura na Europa e nos EUA. A ideia de um arquétipo masculino íntegro e equilibrado em junção de um trabalho conjunto de sua contraparte feminina é algo que desperta estudos, workshops e vivências, principalmente na América do Norte. Ao longo dos anos de 1980-1990 se consolida nos EUA o chamado “Men’s movement” (Movimento masculino), que possui como expoentes David Tacey, Raewyn Connell, Robert Bly, James Hillman, Michael J. Meade, Sam Keen, Robert L. Moore, Stephen Biddulph, Robert Jensen, Jackson Katz, Don Edgar, Michael Messner, entre outros. Eles defenderam diversos modelos de libertação masculina, dentre eles vivências arquetípicas de homens, suas jornadas interiores e espirituais possibilitando ao fim, a cura das feridas do masculino, buscando o resgate do que se chamou de “masculino profundo”. Esse masculino profundo seriam as experiências libertárias e saudáveis que homens nas sociedades tribais e pagãs vivenciaram, por meio dos ritos de passagem, da divisão de trabalho, da comunhão emocional que era partilhada entre os iguais e do empoderamento do homem por meio do reconhecimento social adquirido naqueles espaços e ritos.
Hoje não vivemos numa sociedade que promove os ritos de passagem. Vivemos numa sociedade que consagra o menino-homem pelas inconsequências, irresponsabilidades, infantilidades e comportamentos tóxicos. Vivemos numa sociedade de meninos-homens mimados. Eles são os políticos, os CEOs, os grandes executivos do mercado financeiro, os senhores da razão. E é exatamente esse culto a razão que levou adeptos do Sagrado Masculino a explicar que essa é uma das raízes e males que atingem a psique masculina atualmente. A razão em detrimento da emoção, classificando a primeira como algo bom e masculino e a segunda como algo ruim e feminino. Esse discurso foi profundamente reforçado e enraizado após Descartes expressar sua máxima “Penso, logo existo”, e nesse contexto, a razão atinge um patamar de supremacia e é absorvida na estrutura social do patriarcado que a utilizou amplamente para desqualificar qualquer traço ou característica que remetesse ao feminino. Algumas perguntas para pensarmos juntos:
Por que os homens têm tanta dificuldade em ceder poder, controle e território para outras pessoas, principalmente mulheres? De onde vem a ameaça inconsciente do poder feminino? Por que a figura feminina assusta tanto os homens a ponto de levá-los em comportamentos supostamente autopreservacionistas ou conservadores mas, que no fundo, estão alimentados por um machismo patriarcal que prioriza a dominação e predominância masculina absoluta? Quais foram os processos sociais e históricos que levaram os homens a essa atual disruptura psicossocial nas relações interpessoais? Por que falamos para nossas garotas que elas na adolescência já são extremamente maduras e ensinamos que meninos da idade delas ainda são apenas isso, meninos? Por que exaurimos as mulheres desde a infância com responsabilidades domésticas, burocráticas, sociais, de procriação, de cuidado consigo, com os outros, com o mundo ao redor delas e para os homens dizemos “Garotos são só garotos”? Inclusive isentando-os de responsabilidades e transferindo-as para as mulheres ao redor deles, geralmente mães, tias, irmãs, amigas ou namoradas.
Esses questionamentos me acompanharam desde muito cedo na minha vida religiosa. O Sagrado Masculino veio paralelo aos meus primeiros contatos com o Deus Pan e o arquétipo neopagão do Deus de Chifres. E eu me apaixonei pelo tema, pelo nível de profundidade e urgência que eu senti, muito conectados a essa mudança e melhoria do comportamento masculino em nossa sociedade. Mais algumas perguntas que me acompanharam e compartilho com vocês: por que é tão difícil para homens exclusivamente heterossexuais, aqui no Brasil, se sentirem representados pelas religiões neopagãs, principalmente a Wicca? Por que a figura de uma Deusa não causa neles a mesma liberdade e empoderamento que eu sinto? Por que os Deuses ficam em segundo plano e sua mitologia profundamente empoderadora não é trabalhada na mesma intensidade que a mitologia das Deusas em grupos pagãos? Por que homens gays se sentem confortáveis em reproduzir machismo mesmo numa religião que promove um ambiente que estimula a acabar com esse tipo de comportamento tóxico? Já conversei com algumas sacerdotisas e sacerdotes mais antigos na caminhada do que eu, e comentaram sobre temas gerais que sinto que podem ter a ver com esse fato; alguns dos pontos que me chamaram a atenção foram:
– Homens héteros estão numa zona de conforto, mesmo dentro do neopaganismo ou ocultismo.
– Diversos caminhos que não questionam essa supremacia masculina estão a disposição deles;
– Ainda temos pouca divulgação de temas filosóficos ou sociais que são caros ao neopaganismo, como a defesa do meio ambiente, das minorias, da pautas de sustentabilidade e economia solidária; não atingimos uma enorme parte da população;
– A bruxaria é herética e rebelde, o neopaganismo nem tanto. Mesmo assim, em ambos os discursos opressores encontram terreno fértil;
– Somos parte de uma religiosidade composta por pessoas de classe média ou classe média alta. Não é um espaço onde a população da periferia, da classe mais pobre se vê representada. Nosso discurso não os alcança e/ou atinge espiritualmente.
– Nosso discurso está voltado para as elites e principalmente para as elites brancas que são as principais expoentes desse machismo patriarcal e dos discursos opressores estruturados na atual sociedade;
É nesse contexto que vejo a dificuldade de homens num geral se engajarem num processo revolucionário e libertário de transformação pessoal. O homem hétero, cisgênero, machista, patriarcal e todos os outros substantivos possíveis aqui, simplesmente não lida com essa demanda, não percebe essa necessidade. “O que os olhos não vêem, o coração não sente”. Outro ponto, e aí eu falo da minha realidade, é sobre os homens gays no neopaganismo e na Wicca. Eles se sentem profundamente empoderados pelas descrições míticas das Deusas, sua independência, seu acolhimento, sua autossuficiência e vivenciam sua espiritualidade por meio Delas. E é simplesmente uma das coisas mais lindas que eu já vi e vivenciei. Um jovem gay que se sentiu completamente ignorado, abandonado e rejeitado espiritualmente pelas religiões abraâmicas; porque é isso que essas religiões fazem com qualquer um que se não se enquadre no status quo do patriarcado, se identificando com a Wicca, nas figuras das Deusas e sentindo que finalmente encontrou um local que ele pode se sentir seguro para expressar sua personalidade, sua sexualidade de maneira sagrada e desenvolver sua espiritualidade. Mas muitos desses jovens são o que comentei, gays. Eles são homens cisgênero que mesmo sendo gays, vivenciam uma enorme gama de privilégios e superioridade masculina pelo simples fato de se identificarem como homens. E a maior parte também é branco. E a maior parte ainda reproduz discursos racistas contra as religiões de matriz afro. Nós reproduzimos o machismo estrutural tanto quanto os homens héteros. Sim, eu também já vi acontecendo e já reproduzi e provavelmente continuarei reproduzindo, porque, mesmo que eu me monitore 24h por dia, 7 dias por semana, eu sou um homem cisgênero, eu estou dentro de uma sociedade estruturada no patriarcado e no machismo. O machismo, assim como o racismo estrutural são isso, hábitos de comportamentos, atitudes e pensamentos que estruturam as ações de determinado grupo de pessoas. Nós brasileiros, somos profundamente machistas, racistas e misóginos. Herdamos uma cultura profundamente racista, machista e misógina dos europeus. Está na história do nosso país e na construção cultural que nós experienciamos até os dias de hoje. E só mudaremos isso mudando a nós mesmos.
Como lidar então com esse cenário? Como trazer uma reflexão provocativa mas que ao mesmo tempo seja acolhedora para promover um processo de cura?
O principal passo é reconhecer. Se encontrar.
Enxergar quais são os seus comportamentos que reproduzem o machismo e as feridas do patriarcado em níveis macro e depois perceber no microcosmos, no seu dia a dia, na construção da sua personalidade atual, como você se vê como agente reprodutor do discurso do opressor. Afinal, para qualquer processo de autoconhecimento, reconhecer os obstáculos que nos estagnaram até aqui é essencial. Não ocorrem mudanças sem questionamentos. E depois busque ajuda. Converse com seus amigos homens; héteros, homos, cis ou trans (sim, homens trans também reproduzem tudo o que eu comentei acima, afinal são homens). Nós homens precisamos resgatar a habilidade de construir laços colaborativos e não competitivos. A competição certamente é um dos hábitos que mais alimenta o status quo da nossa realidade de desequilíbrio.
Saiba de onde você fala.
Leia o mundo ao seu redor. Veja como nós homens aqui no Brasil, em Portugal, ou países lusófonos, ou qualquer país do planeta atualmente, somos privilegiados. Reconheça o privilégio. Veja que mesmo homens gays desfrutam, por exemplo, de uma liberdade sexual extremamente acima da média, principalmente em comparativo com as mulheres. Converse com suas amigas. Veja o que elas acham sobre o assunto. Converse. Muitos de nós homens perdemos ao longo do tempo a capacidade de conversar e entender os pontos de vistas das pessoas. Não alimente a competição. Alimente a colaboração e a diversidade.
Ame o diferente.
Um masculino saudável exulta em meio a diversidade, se alimenta dela e a amplia. Um masculino ferido castra a diversidade ao máximo. Pois ao invés de curar sua ferida, ele simplesmente a esconde e faz as pessoas acreditarem que essa ferida é algo normal, aceitável e normatizado. Então o patriarcado normaliza as doenças psicoemocionais dos homens, normaliza suas dores, normaliza seus medos, anseios e traumas. E num processo de adormecimento, o homem regride aos comportamentos infantis de exigir e ser atendido imediatamente. E infelizmente, nós enquanto sociedade, estamos atendendo a essas exigências nesse exato momento: acreditando que o petróleo é essencial para nossa soberania e portanto, não investindo em modelos de geração de energia sustentável; tratando o meio ambiente, a fauna e a flora como insumos comerciáveis como se fossemos os únicos com direito de desfrutar da Natureza e seus recursos, desconsiderando completamente as outras formas de vida da Terra. Abusamos das pessoas mais pobres utilizando e sustentando um modelo social que privilegia 2% da população global em detrimento dos outros 98%… e os exemplos continuariam.
E por que do título? Atualmente vivemos numa era dos extremos. Existem grupos e movimentos que se denominam focados na cura e no resgate do masculino e de sua espiritualidade, mas que na essência pregam uma supremacia de machos alfa, ensina que mulheres foram feitas para procriar e servir aos homens, deturpam mitos pagãos para justificar suas teorias misóginas e fascistas e acabam arrebanhando milhares de jovens ao redor do mundo. Idolatram nazistas, supremacistas raciais e líderes autoritários. Um dos expoentes desse movimento é pagão, se utiliza de rituais que honram os deuses nórdicos, se utiliza de uma interpretação pessoal sobre os mitos e sociedades pagãs e defende uma supremacia masculina que o homem supre todas as necessidades do homem, inclusive sexuais. Sim galera, esse camarada é abertamente gay e profundamente heteronormativo, defende a subjugação das mulheres fazendo uso de discursos extremamente preconceituosos e eu diria até criminosos, e arrebanha milhares de homens que vêem nele, um exemplo de macho alfa a ser seguido. O masculino precisa de cura, sim. E com certeza não é abusando e atacando as pessoas, a cultura, a diversidade e o meio ambiente que iremos atingi-la.
Sejamos livres como Pan; sigamos o pragmatismo selvagem de Freyr; abusemos apenas dos prazeres da boa fortuna como Exú; saibamos a hora exata de agir e de esperar como Oxóssi; vamos nos posicionar como protetores dos que amamos como Dioniso e Apolo; vamos garantir a segurança dos nossos como Dagda; vamos aprender a inovar como Lugh; vamos ser inventivos e meditativos como Pan-Ku e Yù Huáng, o Imperador de Jade; vamos ser pacientes e amorosos como o Búfalo Branco, sejamos audaciosos como Tupi, honremos a Shakti universal como Shiva, guardemos os segredos como Djehuty e Tsukiyomi-no-Kami, honremos a verdadeira Verdade como Hermes e Loki, busquemos o desconhecido como Odin, corramos e aprendamos com os lobos como Ares. Que possamos honrar nossos pais e avôs que carregaram e causaram tantas dores, feridas e privações para que pudéssemos nos tornar homens melhores, eles sabendo disso ou não. E acima de tudo, honremos àquelas que são as Deusas em nossas vidas.
Honremos o Sagrado Feminino.
Abandonemos as certezas. Abracemos o desconhecido e arrisquemos novamente. O Sagrado Masculino é sobre ousadia, amor e exploração. Vamos juntos! 🙂
Referências e dicas bibliográficas:
– American Masculinities: A Historical Encyclopedia. Bret Carrol.
– Sacred Paths for Modern Men: A Wake Up Call from Your 12 Archetypes – Dagonet Dewr.
– King, Warrior, Magician, Lover: Rediscovering the Archetypes of the Mature Masculine – Robert Moore and Douglas Gillette.
– The King Within: Accessing the King in the Male Psyche. Robert Moore.
– The Warrior Within: Accessing the Knight in the Male Psyche. Robert Moore.
– The Magician Within: Accessing the Shaman in the Male Psyche. Robert Moore.
– The Lover Within: Accessing the Lover in the Male Psyche centers. Robert Moore.
– Path of the Sacred Masculine: Contemplation Tools for Your Journey – Karen Kiester and Keith H Johnson.
– The Hidden Spirituality of Men: Ten Metaphors to Awaken the Sacred Masculine – by Matthew Fox.
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