A maior parte dos pagãos que conheço, nunca foram capazes de romper definitivamente com o cristianismo. Ouço frases raivosas e magoadas de como os cristãos maus acabaram com o pobre paganismo, ou como nós somos pobres vítimas da sanha devoradora dos hediondos cristãos. Ou como num passado distante sofremos e sofremos e sofremos pelas mãos dos cristãos pavorosos. Mantemos sistematicamente em nosso discurso essa ideia maniqueísta de que o nosso diabo se chama Jesus. Pois bem, agir assim é manter um relacionamento profundo e emocional com o cristianismo, mesmo que negativo. Ao usar termos fortes de rejeição, o indivíduo demonstra uma ligação com aquilo que ele rejeita. Como na fábula de Esopo (se é que era dele mesmo), em “a Raposa e as Uvas”, quem desdenha quer comprar.
Pois bem, vou meter o dedo na ferida, gente. Farei isso em quatro argumentos enumerados abaixo: Em primeiro lugar, devemos sempre lembrar que o passado passou. O passado não pode nos afetar, ao menos não mais do que uma lembrança boa ou ruim pode nos afetar. Cabe a cada um de nós, individualmente e como grupo, escolher quais lembranças deve nos afetar e quais lembranças nós devemos deixar ir, em nossa relação com o que quer que seja, incluindo nossa relação com os cristãos, seu deus e sua religião.
Em segundo lugar, ao escolhermos a postura de vítimas, não assumimos nosso lugar no mundo. Não digo que não haja vítimas no mundo, muito pelo contrário. Todos os dias mulheres são espancadas, crianças violentadas, pessoas sofrem preconceito de raça, origem social ou fé, pessoas de bem são roubadas ou mortas, e todo tipo de desgraça acontece o tempo todo, com pessoas das mais diversas origens e posições sociais. De fato, não podemos impedir que o mal exista, mas podemos e devemos combatê-lo. Entretanto, ao assumir a posição de eterna vítima, você escolhe não combater o mal e passa exigir que alguém (qualquer um) o faça no seu lugar. Uma eterna vítima não precisa assumir seu papel no mundo, basta choramingar sobre como as coisas são injustas. Choramingando e batendo o pezinho no chão, fazendo birra o tempo todo sobre a violência sofrida (se é que aconteceu mesmo) e esperar que alguém venha socorrer. O problema é que no nosso caso, ninguém vai vir nos socorrer pelo preconceito que sofremos diuturnamente por sermos pagãos. Então, honestamente, a Wicca não precisa que sejamos eternas vítimas do que quer que seja. Precisamos sim, de coragem e atitude política para defender nossos interesses enquanto grupo. Os feminismos, os movimentos negros, os movimentos LGBT conseguem a duras penas lutar todos os dias contra o preconceito e garanto a vocês que não é choramingando sobre como os racistas/homofóbicos/machistas agem que eles garantem suas vitórias. (Uma observação: esta ultima frase não é uma crítica à estratégia política de dar visibilidade aos preconceitos e a violência causada pelo machismo e pelo racismo. O termo “choramingando” refere-se a coisas muito menores e mesquinhas).
Em terceiro lugar, há gente ruim em qualquer religião. Geralmente sabemos disso objetivamente, mas parece que fazemos questão de esquecer isso quando vemos algum cristão fazendo algo que os envergonha. Aliás, agimos com o maior orgulho do mundo quando isso acontece, dizendo “nossa, esse pastor tem mesmo é que se ferrar” ou “tinha que ser evangélico mesmo…” Ora gente, pessoas (de qualquer tipo) fazem coisas estupidas, a crença delas apenas colore a estupidez. Se essa mesma pessoa hipotética, motivo de vergonha pessoal ou mesmo vergonha alheia praticasse uma religião pagã ou fosse ateia, garanto que ela não seria melhor por isso. Faria algo estúpido com a mesma desfaçatez. Mesmo nós em busca de nosso crescimento espiritual não estamos menos sujeitos a cometer erros, e os Deuses são céleres em mostrar isso para o bom devoto. Ou seja: cedo ou tarde, sendo humano como você é, você cometerá um erro e nada no universo pode impedir isso. Devemos, portanto, ser cuidadosos com nosso julgamento que impede de ver claramente os aspectos sombrios aos quais nem ao menos nós nos apercebemos e que são justamente aqueles que nos levam a cometer os erros mais grosseiros. Em outras palavras, preste atenção naquilo que você julga tão severamente. Aí há pistas sobre onde você irá pisar na bola, sem dúvida alguma.
Em quarto lugar, todo deus merece respeito. Muitos pagãos perdem a compostura e julgam que a culpa de tudo é do “malévolo” Deus cristão. Isso é apenas uma variante do argumento 2, acima. Basicamente, muitos pagãos se comportam como vítima do Deus cristão. E novamente, uma grande bobagem. Ele é apenas um Deus mediterrânico, como dezenas de outros. Provavelmente medianita, antes de se tornar hebreu. Ele é um Deus ciumento e exige exclusividade de seus fiéis. E muitos tendem a vociferar contra o pobre por causa disso. Pois bem, Aset (que alguns chamam de Ísis) é igualmente ciumenta. Freya, segundo alguns e segundo minha experiência também pode ser. Iemanjá, nossa adorada Iemanjá, é ciumenta do mesmo modo, assim como Oxum, que é filha dela. Outros dirão “ele é um Deus violento e sanguinário”. Sim, como El-Shaddai ( “Senhor dos Exércitos”, um dos títulos dele), ele não é menos sanguinário que Set, Ogum, Sekhmet, Kali, Marte, Ares ou Morrigan.
Nosso problema não é com o Deus cristão, mas com a eventual postura agressiva de muitos novos convertidos. Normalmente – exceto num caso de desequilíbrio patológico – você não verá um cristão maduro na fé (para usar um termo deles) batendo boca gratuitamente por causa de religião.
O que me leva ao titulo desse artigo. Geralmente, quando mudamos de religião passamos por aquilo que se convencionou chamar de as 5 fases do luto, ou nos termos mais apropriados o “Modelo de Kübler-Ross”. Segundo Elisabeth Kübler-Ross em seu livro On Death and Dying, há 5 estágios de desenvolvimento do luto e da perda. Ela argumenta que em caso de perda, luto, ou sofrimento prolongado, todos temos a tendência de passar por pelo menos duas dessas cinco fases. Eu percebi que isso é semelhante no caso de troca de religião, com ênfase em determinados estágios e quase ausência de ao menos um especificamente. Vejamos:
1. Negação e Isolamento:
No modelo padrão, quando alguém sofre uma perda significativa ela pode entrar em um estado de Negação da perda, onde compreensão do fato gerador de dor tende a ser mínima. O indivíduo tende a elaborar frases como “não acredito que fulano morreu” ou “é como se ela ainda estivesse aqui conosco”. Enfim, nega-se o fato gerador de dor.
Outra saída é o Isolamento, onde o individuo permanece distante dos elementos que reforçam a lembrança da dor. Evita encontrar familiares ou amigos que façam lembra-lo do problema. Procura ficar distante de situações que podem provocar dor ou tristeza.
O caso de alguém que tenha mudado de religião pode ser semelhante. Os argumentos de Negação são providos pela nova religião, enquanto o Isolamento se dá no afastamento do grupo religioso anterior, que em muitos casos pode ser a família de origem. Esse é o momento em que muitos fiéis condenam a prática religiosa anterior e usam as novas crenças para justificar essa condenação.
Muitos fiéis de todas as religiões que passaram pela experiência da mudança de religião vivem constantemente neste estágio. É aqui que você vai encontrar cristãos que dizem que a religião que eles deixaram era do diabo ou que enquanto eram católicos, eles estavam “no mundo” (negando a validade da experiência de sagrado católica sem negar o cristianismo). É aqui que veremos pagãos dizendo que a Wicca é a religião mais antiga do mundo (negando a antiguidade do cristianismo) ou que o cristianismo é uma religião de ignorantes (pois pagãos supostamente sabem mais da história do cristianismo do que os cristãos).
2. Cólera (Raiva):
No luto, é neste momento que o individuo começa a assumir que a perda aconteceu e reage – normalmente de modo agressivo. Pode ser uma extensão da Negação, onde ela ocorre de modo mais violento ou agressivo. De todo modo aqui ele começa a questionar a perda e tentar arranjar explicações racionais ou que sejam minimamente adequadas. “Como isso é possível?”, “Por que eu?”, “O que eu fiz para merecer isso?” são expressões típicas deste estágio e traduzem essa necessidade de explicação.
Nesse modelo, ao viver a morte de sua antiga fé (em minúsculas, com o sentido de religião) e o nascimento de sua nova fé, o recém-convertido busca defender de modo agressivo e mesmo violento suas novas práticas religiosas. Quanto maior o grau de questionamento interno, mais agressivo. Geralmente isso reflete o confronto interior entre os novos valores e os valores adquiridos na infância. Isso quer dizer que quanto maior a distância entre os valores religiosos familiares e as novas crenças, mais agressiva tende a ser a reação do indivíduo.
Todos que passam por isso vão se encontrar em algum momento brigando para defender suas crenças, projetando o conflito interno sobre alguém, mesmo num contato casual. É aquele amigo evangélico que vai até sua casa só para discutir com você sobre como a Bíblia é maravilhosa e Jesus é seu salvador e você é infeliz por não perceber isso. Ou aquele amigo pagão de te enche a paciência tentando te convencer que a roda sul é mais correta que a roda norte. Em ambos os casos, a pessoa reagirá agressivamente por você não aceitar a verdade.
Esta fase é possivelmente a origem de nossas principais diferenças e incompreensões. Fica o conselho: ignore. Sorria e acene. Faça cara de paisagem. Ou se tiver cacife para isso, compreenda a religião alheia melhor do que seu interlocutor e tenha dignidade ao demonstrar isso.
3. Negociação:
No modelo típico, este é o momento que durante a perda o individuo tende a minimizar os danos. O preso está disposto a um acordo, o paciente terminal fala com Deus pedindo só mais uns dias ou meses para ficar com os filhos, o recém divorciado tenta uma reaproximação. “Só mais um pouco”, ele diz. “Se eu tivesse mais um instante, seria diferente”. “Queria mais um ano com meus filhos”. O indivíduo está ciente da perda e barganha-se para conseguir compensar a perda. Ele está disposto a oferecer qualquer coisa para diminuir sua perda ou mesmo conseguir alguma compensação.
Esta é a fase atípica no modelo de transição religiosa. O acordo foi feito logo no início da conversão, e neste momento o indivíduo já se convenceu (ou não se convenceu) da validade de sua religião. Se a fé que ele encontrou é capaz de oferecer uma espiritualidade válida, então ele permanece, e neste caso, o “acordo” que pode ter representado um ônus inicial começa a dar frutos. Caso contrário, ele abandona a religião e vai à busca de outra fé ou agrupamento religioso dentro da mesma religião, começando o processo todo novamente.
Esse pode ser um momento importante em casos pontuais, pois é aqui que nascem os sincretismos. O conflito interno perdeu força e neste momento o indivíduo começa a adequar valores de infância a nova religião, na medida em que esses valores não são conflitantes com a nova fé. Eu vivi isso quando comecei a repensar meu modelo de reencarnação (eu venho de uma família espirita kardecista) para um modelo de múltiplas vidas mais sofisticado.
4. Depressão:
No modelo Kubler-Ross é nessa fase que o luto é elaborado e o indivíduo demonstra um maior afastamento do mundo, maior inclusive que na primeira fase (Isolamento). Aqui se apresentam sintomas típicos de depressão, onde em casos graves há a necessidade de se buscar ajuda profissional. Fase marcada por um sofrimento intenso, mas não necessariamente expressivo, pode culminar em grandes expressões de criatividade.
No modelo de transição religiosa, é neste momento que o indivíduo é confrontado com as responsabilidades e deveres adquiridos com a nova religião. Ao se perceber inadequado ao novo conjunto de valores, o fiel pode sofrer uma ligeira ruptura interna. Basicamente, não há mais espaço para a Negociação (quando valores antigos e novos se adequam em função de sua semelhança) e o indivíduo deve de fato passar por uma verdadeira transformação. Como isso é um processo marcado pelo isolamento, dificilmente você verá expressões publicas deste momento. É possível também que esse estágio seja marcado pela compreensão dos aspectos sombrios de sua religião.
Os cristãos evangélicos chamam isso de “deserto”, “passar pelo deserto”, “quebrantamento”. Um termo possível na Wicca é “a noite escura da alma” (apesar da origem cristã do termo), mas a quase ausência de termos dessa natureza em religiões neo-pagãs é sintoma para um aspecto de nossa ética, que é a noção de responsabilidade pessoal. Ou por outro lado, é quando um fiel de uma igreja percebe que seu pastor é corrupto e muda de igreja sem mudar de denominação, ou quando entre neo-pagãos ouvimos histórias de pessoas que traem seus votos sacerdotais e atacam suas antigas tradições ou grupos (ou vice-versa).
5. Aceitação:
Ultimo estágio do modelo de luto, ele implica em um estado de paz em relação a perda. O indivíduo aceita a morte, a doença e a perda como partes essenciais da existência e é capaz de inclusive enxergar os aspectos positivos dessa perda. Na morte de um ente querido, diz “ele está em paz neste momento” ou “papai está no céu”. Ante a doença incurável, vai arranjar o que fazer da vida ao invés de ficar choramingando como nos estágios anteriores. É aqui que alguns criminosos apresentam verdadeiro arrependimento quando confrontados com o crime e a perda de liberdade. O indivíduo reconhece sem meandros ou meias palavras o fato da perda e é capaz de elaborar isso sem o menor receio. Poucos indivíduos alcançam esse estágio.
No modelo que propomos, é aqui que o novo convertido deixa de ser um novo convertido. Sua fé está madura, e seu julgamento sobre sua antiga religião, ou mesmo sobre qualquer religião é fundado em tolerância e nos fatos. Raramente acusa e por vezes sabe reconhecer o sagrado para além da religião. Sua religiosidade dá espaço para uma espiritualidade mais ampla e capaz de responder a problemas complexos onde sem vacilar com seus votos (normalmente adquiridos no estágio anterior), permite-se aprender e transitar com sua Fé (em letras capitais, com sentido de espiritualidade). Aqui, Aceitação não significa submissão: o indivíduo não submete sua Fé a outros sistemas de crença. Ele dialoga com eles. E nesse diálogo, ele adquire mais Sabedoria.
Conclusão:
Não importa: quem deseja avançar nos processo de espiritualização viverá o luto de suas antigas crenças e valores. E isso é desejável, pois parte de todo processo de espiritualização implica numa morte-e-renascimento. Nascemos para viver, vivemos para morrer e morremos para renascer. E nenhuma morte (real ou simbólica) é menos desprovida de luto. Ao compreendermos que morremos como humanos, somos capazes de apagar os limites da intolerância religiosa. Enquanto nós lutamos diuturnamente contra a morte, marcamos os limites da vida comum, regrada, limitada, cheia de leis e formas adequadas de comportamento e ação. Mas à medida que a morte (repito, simbólica ou real) avança, esses limites perdem sentido em favor daquilo que nos torna humanos: nossa poderosa conexão com o sagrado, quer se chame, Netjer, Allaah, Deus, ou a Grande Barbie Cósmica.
Portanto, a verdadeira ruptura (com o cristianismo, o comunismo, ou qualquer “ismo” que te deu prazer, mas agora é só um estorvo) só se dará se você for capaz de deixar o apego a essas crenças verdadeiramente morrer dentro de você. Não vou mentir para você: isso dá trabalho, isso é difícil, isso dói. Você vai cair algumas vezes antes de começar a tropeçar. Vai tropeçar muito, diversas vezes, antes de ser capaz de levantar e seguir sozinho. E apesar disso, você fará isso novamente, por quantas vidas forem aquelas que você for capaz de ouvir o chamado dos Deuses. Em todas elas você passará por isso novamente, apenas pelo prazer indelével de marcar em sua alma essa conexão maravilhosa com o sagrado.
Boa jornada!
Imagem: Johny007pan. Não somos detentores da imagem.
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