Essa resposta foi dada num cometário de uma questão que respondi no Ask, um tempo atrás.
Dúvidas recentes sobre a TCS andaram chegando a mim. Esse negócio de Sombra na TCS é algo do mal? A TCS é uma tradição de Wicca? A TCS pratica Magia do Caos: esse negócio de Magia do Caos é algo do mal?
Bem, são perguntas pertinentes, certamente.
Para quem não nos conhece até poderíamos ser algum tipo de culto satanista maléfico onde tomamos sangue de bode no café da manhã apenas por diversão, conjuradores de demônios ancestrais cujos nomes são impronunciáveis, sadomasoquistas cruéis vestindo botas de couro, e nada mais.
Nada mais distante da verdade, certamente.
[Pausa para explicação: o ultimo trecho do texto é uma ironia. Dou-me ao trabalho de deixar isso claro porque no fim das contas, sempre vai ter um bobo dizendo que escrevi um texto que afirmava que somos bebedores de sangue de bode, conjuradores de demônios ancestrais e praticantes de BDSM e tudo mais, o que claramente não é verdade]
Vamos, portanto às explicações.
1) Porque Sombra? Isso já foi explicado claramente pela Naelyan no nosso site:
“Seguimos o Caminho do Meio, o que significa que buscamos a supressão das dicotomias através da integração de forças opostas complementares. Percebemos o universo como sendo formado pela interação entre Caos/Ordem, Escuridão/Luz, Deusa/Deus, Fogo/Gelo, forças que não estão em oposição, mas sim em uma eterna dança de criação da vida. E somos todos feitos de partes iguais de Caos e Ordem, Escuridão e Luz. Temos todos dentro de nós a faísca divina da Deusa e do Deus. Não somos apenas Luz, não somos apenas Trevas, somos Sombras, somos Cinza. Buscamos integrar nosso lado luminoso e nosso lado sombrio, fazendo de nossa sombra nossa maior aliada.”
+Ainda:
“Foco no caminho do Meio. Hécate é a Senhora das Encruzilhadas. Ela está de pé nas interseções, nos mostrando todas as opções e nos oferecendo e garantindo a escolha. Vamos então usar dessa dádiva e dessa capacidade para escolher o equilíbrio, para buscar a harmonia. Não serviremos à Ordem, com sua disciplina e hierarquia rígidas. Não serviremos aos Caos que alimenta e engrandece os conflitos. Seremos como as sombras, que são parte da luz e da escuridão, vivendo de ambas, alimentando ambas e garantindo que o equilíbrio seja mantido. Em nossas vidas e ao nosso redor.”
Ou seja, a palavra Sombra é uma também uma metáfora para aquilo que chamamos de Caminho do Meio. Portanto, o que vem a ser isso? Desde o século XIX, há uma noção que permeia os grupos ocultistas ocidentais que é a distinção entre Caminho da Mão Direita e Caminho da Mão Esquerda. Essa distinção surgiu em função do contato de magistas europeus com tradições tântricas hindus. Subsequentemente, esse conceito foi desenvolvido como um conceito cabalista, relacionando a Arvore da Vida da cabala com os caminhos. Muito tempo depois surgiu a noção de Caminho do Meio, distinto e equidistante dos outros dois, reconhecendo as vantagens de ambos e o problema com seus excessos.
Em todo caso, podemos resumir a diferença entre os três caminhos da seguinte forma.
O Caminho da Mão Direita (CdD/RHP) é um caminho de devoção, amor e entrega total a divindade. Altruísta por excelência relega o indivíduo a um segundo plano em favor do bem universal. Preconiza a Ordem acima de tudo, o bem de todas as coisas na forma de um bem compartilhado através da concordância de ideias, valores, e sentimentos na forma de uma comunidade, um Deus, uma crença. Mas a Ordem em excesso leva indubitavelmente a estagnação das forças em desenvolvimento, transformado a liberdade em autoritarismo. Geralmente, mas nem sempre, manifesta-se através de magístas que vem de culturas ou religiões abraâmicas.
O Caminho da Mão Esquerda (CdE/LHP) é um caminho de desenvolvimento pessoal acima das necessidades coletivas. Somente o auto-conhecimento importa, o bem maior é o bem a si mesmo, e logo o conflito com o Outro se estabelece. Mas é no conflito que se dá o desenvolvimento das Forças universais, de modo que sem isso, o universo pararia. Mas o excesso de conflito gera destruição, pois nada pode se estabelecer ordenadamente se tudo se reconstrói, é recriado e transformado o tempo todo. Liberdade extrema é o seu hino, o Poder seu instrumento. Geralmente, mas nem sempre, vc os encontrará em grupos que apresentam o oposto do “status quo” como expressão de suas crenças. Isso inclui a maior parte dos Satanistas modernos, mas não necessariamente.
O Caminho do Meio, Caminho Vermelho, Via Mediana (CM/MW) leva ao reconhecimento dos instintos, da intuição como meio do auto desenvolvimento. O divino manifesta-se como plural e é imanente (ele é percebido como transcendente no CmD e inexistente ou desnecessário no CmE). Num certo sentido tudo é sagrado inclusive vc, eu e cada pessoa que vc conhece. Nessa medida, o auto-conhecimento é o conhecimento do todo, e daí a magia estabelece-se. Geralmente praticantes do Caminho do Meio são tratados como sendo semelhantes a um dos outros dois grupos, pelo outro grupo: praticantes do CmD podem crer que nossos métodos não são diferentes nem melhores do que aqueles que seguem pelo CmE; para o CmE somos até melhores que o CmD, mas sem culhões para magia “de verdade”. O fato de usarmos métodos de ambos os Caminhos não melhora nossa imagem, mas quem tá ligando para isso? A verdade é que a função do Caminho do Meio é trabalhar pelo equilíbrio, em favor do bem comum mantendo a liberdade em favor de todos. Por consequência, reconhecemos que o conhecimento é o meio de garantir essa liberdade. Para o CmE, o conhecimento deve ser dado a quem for capaz de demonstrar Poder o bastante para encontrá-lo e mantê-lo. Para o CmD, o conhecimento é perigoso demais para ser dado a qualquer um e por isso deve ser mantido em segredo. Em ambos os casos, o conhecimento (especialmente o conhecimento mágico) é tratado de modo elitista. Para o CM, o conhecimento deve ser dado a todos, sem distinção. Pois somente e verdadeiramente desse modo é possível expressar todas as possibilidades que a Liberdade tem para oferecer. É comum encontrar praticantes do Caminho do Meio entre religiões pagãs, mas não somente.
Além disso, a noção de Caminho da Mão Esquerda/Caminho da Mão Direita e Caminho do Meio está por demais cristalizada e ainda é muito útil por definir um conjunto muito amplo de práticas mágico-religiosas, cada uma em suas categorias. Essa noção é tomada de empréstimo da cabala – os pilares da Compaixão, da Severidade e da Justiça, respectivamente -, mas igualmente recebe influência de sistemas religiosos hindus, que apresentam noção semelhante. De fato, se incluirmos o Vodú haitiano neste contexto, cumpre lembrar que as diversas expressões do culto dos Loas incorpora essa terminologia sem nenhum problema: Rada Loa, Gedê Loa, Petro Loa, são identificados respectivamente com Mão Direita, Caminho do Meio e Mão Esquerda.
Antes que possamos pensar que há um problema a ser superado, é necessário dizer que não há problema algum, desde que fique claro que essas noções são antes de tudo parte de um arcabouço cultural que permeia o modo como os europeus desenvolveram seu pensamento magico-ocultista nos últimos 200 anos. Mais do que isso, a preocupação não é com a terminologia (pois afinal, não existe uma necessidade sistematizadora entre formas distintas de se pensar o problema da magia), mas com os métodos que levam a experiência do sagrado. Nesse sentido, a manutenção dessa terminologia permite um transito de práticas espirituais que não seriam possíveis se houvesse uma cristalização classificatória e distintiva em terminologias que favorecem a epistemes ou a hermené, mas não a gnose.
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