Medusa foi estuprada por Poseidon?

Lembrar é viver:

Medusa foi estuprada por Poseidon?

Não é bem isso. Isto não está correto.

Nesta questão, há uma confusão acerca das fontes para este mito.

A primeira versão deste mito foi registrada por Hesíodo em Teogonia (c. sec. VII AEC). Nesta versão, Medusa era uma humana, sacerdotisa de Athená que foi seduzida por Poseidon. O Deus a convenceu a deitar-se com ele dentro do Templo, o que irritou profundamente a Deusa. Ou seja, ela o fez de livre vontade. Como punição, ela foi transformada em uma Gorgona.

Segundo as crenças gregas, o crime/sacrilégio que Medusa cometeu é a “Hybris”, que era qualquer fala ou comportamento que feito por uma pessoa alegando-se superior aos Deuses. Medusa enquanto sacerdotisa cometeu Hybris por supor que poderia se deitar com o Deus que era adversário de Athená, dentro do templo da Deusa.

A segunda versão desse mito, muito mais tardia, data da virada do séc. I AEC para o séc. I EC (ou seja, escrita quase 700 anos depois) e é de um poeta latino chamado Ovídio. Nesta versão, Netuno (que os romanos já reconheciam como Poseidon) viola Medusa dentro do templo de Minerva. Nesta versão, a maldição segue-se do mesmo modo.

O que podemos entender dessas duas versões?

A primeira versão reflete uma sociedade que reconhece uma maior autonomia da mulher (Medusa escolheu deitar-se com quem desejou por livre vontade), mas que ama e teme os Deuses. Uma sociedade que está se tornando patriarcal (Hesíodo é notoriamente desconfiado das mulheres), mas que ainda se vê dialogando em pé de igualdade com o mundo feminino.

A segunda versão (que pode ser justamente a versão que fez com que o autor fosse exilado por Augusto) expressa claramente a ideia de que uma mulher correta não se deita com qualquer homem, mesmo que seja violada, e que mesmo um estupro é responsabilidade dela. Os Romanos, em geral eram misóginos e eram também uma sociedade patriarcal com todas as características comuns a este tipo de organização social. Essa versão portanto, reflete esta dinâmica social.

Pelo que se sabe, a ideia de Ovídio era que tudo na natureza era transitório (por isso o nome de seu Poema, “Metamorfoses”). O motivo do exílio imposto pelo Imperador, segundo o próprio Ovídio foi por causa de “um poema e um erro”. Quando Augusto se tornou Imperador, ele impôs pela força da lei um período bastante conservador nos costumes romanos. Usualmente é atribuído que o poema tenha sido o “Ars Amandi”, mas suponho que a alteração nos mitos antigos que eram bem conhecidos pelos romanos, tal como nossa sociedade conhece a Bíblia, tenha irritado o Imperador.

Qualquer que seja o caso, ambas as fontes deixam claro a posição de seus autores: Hesíodo não fala de estupro em nenhum momento, por mais misógino que ele fosse. A passagem é um exemplo de sua desconfiança sobre as mulheres e que por sua vez depõe contra Medusa, uma personagem feminina. Um estupro, entretanto, falaria contra Poseidon, o que em última instância seria Hybris por parte do poeta e consequentemente mal recebido pelo seu público.

Os romanos por outro lado tinham uma relação ambígua com relação ao estupro. Em geral podemos dizer que os povos latinos do presente guardam muitas das concepções romanas acerca deste assunto grave: a falsa ideia de que uma mulher é propriedade de um homem implica no direito de um homem tomar sua mulher ou escravas como desejar. Isso era, obviamente, muito mal visto pelas respectivas esposas, mas ainda assim uma prática comum. Do mesmo modo quando um homem tomava uma mulher ou um jovem rapaz – que não lhe “pertencia” – ele cometia um crime apenas um pouco mais grave que roubo, mais grave por envolver agressão. Mas o poder habitualmente à tudo é capaz de relevar (e eu não digo isso com qualquer prazer ou alegria)!… Assim, ideia subjacente de que um homem poderoso poderia eventualmente estuprar alguém sem consequências está colocada no texto de Ovídio a partir da figura de Netuno.

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