Magia como linguagem e representação

Ao longo dos anos tenho visto um tipo de engano vindo de magistas com graus variados de experiência ao confundir a qualidade de seus sistemas de magia como sendo uma diferença de grau de poder.
Basicamente, um entusiasta de um dado sistema acredita que seu modo de ver as coisas é melhor do que o de outro praticante ou de um outro sistema. Em muitos casos, magistas inexperientes, ignorantes ou mesmo desonestos afirmam categoricamente que um dado sistema de magia é ruim, enquanto o seu próprio sistema seria o suprassumo da experiência magística da humanidade.
Tolice, pessoas, tolice. Quando está claro que um dado sistema é o melhor para si mesmo não há o que censurar; qualquer um é supostamente capaz de saber o que é melhor pra si. Minha crítica vem da observação de que muitos magistas supõe que seu sistema seria melhor do que outros, praticados por pessoas que não são de seu grupo, e que esse sistema seria o melhor também para essas outras pessoas, se não fossem tão ignorantes, estúpidos ou [insira aqui a sua ofensa derrogatória favorita].

Magia vive apenas em liberdade

O grande problema é quando alguém toma seu sistema de magia pela realidade, obviamente é natural supor que toda realidade se curve às suas crenças. A rigor, isto ocorre quando o grau de dogmatismo por parte do magista é maior que seu bom-senso, ou ainda, maior que sua experiência com sistemas distintos. Ao ignorar as variantes que os conceitos mágicos podem oferecer e se fiar apenas em um único sistema, o magista fica desarmado por sua ignorância. E, ao ignorar uma faceta da realidade, o indivíduo se submete a ela. E magia, caros, vive apenas em liberdade.
Um único sistema de magia não pode, sob nenhuma hipótese, dar conta de todo o real. De fato, todos os sistemas de magia já produzidos também não dão conta de todo o real, mas mais conhecimento mágico diminui o que não sabemos sobre o real.
Uma regra rígida é que o universo produz muito mais informação do que somos capazes de perceber, e continua produzindo mais do que seríamos capazes de perceber, sistematizar e conjugar. Sistemas de magia são, ao seu próprio modo, um jeito de sistematizar o real em mapas de realidade que permitem de modo simples e eficiente traduzir a complexidade da vida em conceitos palatáveis. Cabala, Astrologia, Tarot, I-Ching, Opelé-Ifá, Oghans, Runas e tantos outros sistemas são capazes de trazer significado para a natureza e a vida humana, coisas que em si mesmas prescindem de significado, mas que segundo nossa experiência nos coloca em contato com algo além de nós mesmos.

Formas de representação mágica

Sistemas de magia são apenas mapas de realidade, um modo consensual de ordenar o mundo segundo um dado sistema de crenças. Por exemplo, quando pensamos em uma Sephirah, como Geburah, por exemplo, ou uma Runa, ou um Odú, estamos pesando em diversas categorias, ideias, valores e conceitos que eles são. Mas ainda seguindo o exemplo, Geburah representa os aspectos severos de YHWH. Representa a Guerra; um Rei em sua carruagem; Marte e todos os Deuses da Guerra.
A severidade de YHWH é mais complexa que isso. A Guerra é mais complexa que isso. Todas essas imagens e Deuses são mais complexos que isso.
Assim, toda forma de representação comunica algo a alguém. Geburah comunica a Guerra. Quanto a nós, somos seres dotados de linguagem, fazendo o uso da linguagem como parte das estratégias de sobrevivência e adaptação ao meio. Possuir linguagem é uma das qualidades fundamentais de nossa espécie. Evoluímos para dialogar com outras pessoas, com natureza, mesmo que ela não se importe com nossa opinião, com seres de outros planos, mas antes de tudo dialogamos com nós mesmos e nossos universos interiores. E esse diálogo depende do modo o qual estabelecemos essas categorias de compreensão do que nos cerca. Num certo sentido, depende do modo o qual construímos nossa linguagem, como construímos nossas representações e como elas são eficazes em transmitir nossas ideias sobre o mundo.

Transmissão de ideias através de arte

Posto isso, uma das formas mais eficazes de se transmitir uma ideia é através da arte. Admiramos artistas e suas obras, e para além de qualquer consideração racional, e quando são grandes cada um deles transmite a força da linguagem de seu povo e sua época. Portanto, a beleza da arte consiste na capacidade de tornar atemporal aquilo que é fugaz. E é assim que a magia funciona; magia é chamada de Ars Magna, a Arte Maior, ou Grande Arte, como o termo ficou consagrado em português.
Cada sistema de magia pode ser tratado de modo eficaz como uma linguagem, com palavras, símbolos e gramática próprias. É uma literatura de símbolos, onde cada feitiço é como um poema, cada encantamento é como um conto. Quando um sistema de magia se estabelece, admiramos seus fundadores, exaltamos os textos que escreveram, debatemos exaustivamente seus conceitos, criamos egrégoras em torno disso e brigamos de modo eficaz com qualquer pessoa que nos julgue contrariamente ao sistema que escolhemos. Brigamos por nossa escola de magia do mesmo modo que brigamos por causa de times de futebol ou partidos políticos. Mas como eu já disse, é tolice. É como brigar orgulhosamente com alguém por falar uma ― e em muitos casos, apenas uma ― língua.

Diálogo imortal

Soa ridículo quando colocamos desse modo, não é mesmo? Pois é. É ridículo mesmo.
Mas cada povo e cada época constituiu formas eficazes de transmitir aos universos interiores e exteriores seus sentimentos, ideias e necessidades. Dialogaram fazendo uso de valores, fé, filosofia e amor. E a cada vez que a eficácia se estabelecia nos resultados desse diálogo imortal, novas palavras eram adicionadas a este vocabulário, e novos falantes nasciam para a Grande Arte.
Nesse ínterim, conversamos sobre os aspectos visíveis da Grande Arte, aqueles que pertencem à cultura e possuem uma semiótica própria, sendo passíveis de sistematização e que acabam por desenvolver uma gramática própria. Certamente magia não se resume a isso, mas o seu aspecto temporal passa por todos esses problemas, por mais distinto que seja de seu aspecto perene.

Aspectos são culturalmente orientados

O que precisa ficar claro é que são justamente os aspectos culturalmente orientados que tratam da magia que geram uma gama tão extensa de problemas e confusão: o que é mais correto? Traçar o circulo mágico ou fazer o RMP? Tem que fazer círculo quando faz magia rúnica? Minhas quizilas valem na Wicca? Tenho 13 anos, posso me autoiniciar na Umbanda?
A resposta para cada uma dessas perguntas passa pela gramática especifica de cada sistema. A beleza é que um indivíduo multilíngue pode dar respostas além de suas linguagens originárias. Dessa forma, um Wiccano nascido no Texas pode nunca saber na vida o que é uma quizila, ou eventualmente ler esse assunto em um livro.

Conceito de quizila

Em tempo, uma quizila é um tipo de tabu nascido de uma iniciação em uma religião como o Candomblé, nas mais diversas nações que se apresentam no Brasil.
Para um Wiccano brasileiro o conceito pode ser estranhamente próximo. Alguém que tenha cumprido sete anos de Candomblé e decida se tornar Wiccano ainda está sujeito às suas obrigações, incluindo os tabus próprios das quizilas. Um praticante individual precisa encontrar uma gramática que seja funcional na sua relação com Deuses e Espíritos. Uma nova língua vai surgindo à medida que novas conversões forem estabelecidas com o tempo. E o que era uma tradução vira tradição.

Preconceito mágico e linguístico

Assim, novas formas de magia são como gírias, pidgins e dialetos em formação. Muito da crítica que se faz contrária a Wicca, pop magick ou magia do caos, por exemplo, nasce da suposição que seriam formas menores de magia, o que é falso, já que ela bebe das mesmas fontes de quem critica. Isso é apenas a versão pagã do velho preconceito linguístico.
Quem critica esquece que qualquer novato num sistema mais velho e coeso também tem dificuldades em apresentar resultados. A diferença entre um sistema mais antigo e um sistema jovem é que estes têm mais condições de apelo a magistas novos. Neste caso, sistemas antigos tendem a falhar miseravelmente.
Com mais praticantes jovens, é natural pensar que um sistema nascente seja menos eficiente. Contudo, o que está em jogo é a inexperiência dos jovens praticantes X outros sistemas coesos. Esta é, de fato, uma comparação injusta, pois se fosse possível comparar, que sejam os standards mínimos esperados de um magista ocidental dentro de parâmetros semelhantes. Acredite, vocês se surpreenderiam com a quantidade de bons magos nascidos de tradições “vira-latas”.

Não existe norma culta

Portanto não faz o menor sentido quando se critica a prática de outrem por não usar a gramática correta, até porque não há gramática correta. O que deve ser medido é a eficácia em expressar corretamente o diálogo com os Deuses, espíritos e a natureza. E eficácia se mede pelos resultados reais na vida desse praticante.
Qualquer coisa diferente disso é semelhante ao elitismo que se pratica quando supõe-se que uma gíria não é uma linguagem adequada para pessoas bem educadas. Por fim, sabemos que basta que se entenda bem com os Deuses, os espíritos e a natureza toda que nos cerca, todos generosos e de ouvidos atentos às nossas preces, sejam preces em latim, com transistores ou histórias em quadrinhos.

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